O cone sem clone

Quando eu comecei a trabalhar com futebol notei algo que me incomodava muito: eu contaria o passado ao falar dos ícones de cada clube e raramente estaria presenciando um deles. 

De fato, o passado do futebol era melhor. Os grandes ídolos já não estão mais em campo e cada clube ficou abraçado a um super herói. 

Vi o Renato, mas não comentava. Vi Zico, era criança. Não vi Pelé, tristeza maior de um amante de futebol. Vi Raí, mas da arquibancada. Pouco me lembro do Reinaldo.  Ademir da Guia só de ouvir falar. Falcão, só no final e também como torcedor.

Os heróis estão em quadrinhos, quadros e livros. Nunca estavam na minha frente com a roupa de treino. 

O microfone ou a tela sempre pareciam saudosistas quando eu ficava diante deles pra discutir futebol. A real é que eu sempre quis cobrir uma lenda e poder dizer pros netos daqui 40 anos como era entrevistar, assistir, reagir e criticar o maior ídolo de um clube. 

Mas eu queria da estréia a despedida. Não queria um trecho. Queria a história toda. E achei que não fosse ter. 

Que tudo que era pra acontecer tecnicamente já havia acontecido. Que o futebol não permitia mais que um jogador na década de 2010 pudesse ser o maior da história de um dos grandes.

Até que eu fui ao Maracanã um dia ver o Fluminense com amigos de arquibancada e notei que ali havia uma relação incomum.  

Fred é distante pra mim. Jogou em Minas, na França, e quando veio pro Rio eu nem morava aqui ainda.  Conhecia, assistia, mas não dimensionava. 

Naquele dia eu vi que havia um jogador em campo que podia errar. Que quando ele gesticulava a torcida reagia conforme seu desejo. Via em crianças a vontade de ser ele e um nome começando a ser o nome dos filhos dos meus amigos.

E só assim percebi que Fred não era um centroavante apenas. 

Do Fluminense é mais fácil do que de um time médio. Mas é bem mais difícil dimensionar midiaticamente do que num Flamengo, Corinthians, Palmeiras. 

Fred era um nome pra paulistas. Um rival pros cariocas. Um ex pros mineiros. Um super herói pros tricolores. 

E como aprendi com Marcão, Lugano e Conca, pouco importa o que o mundo acha de você. O que importa é o quanto você vale pros seus. 

Eu estava no Maracanã quando a torcida de maioria flamenguista gritou “Fred!” se rendendo ao ídolo rival naquele gol contra a Espanha que definiu o jogo. O segundo, inclusive. Ele fez o primeiro gol também. 

Eu vivi o drama do “cone”. A imprensa paulista não tinha a dimensão do Fred e por isso o menosprezava. O centroavante culpado que não recebeu uma bola a Copa toda quase. Culpado de que, oras?

Briguei por ele. Nem o conhecia. Mas briguei porque ninguém que diz amar futebol e trabalhar nisso pode desqualificar o super herói de uma torcida. Se eles o veem de capa, quem é você pra dizer que ele não voa?

E o tempo passou. O pegador virou santo. Marido. Pai. 

O menino do Cruzeiro virou veterano. A aposentadoria chegando, a volta ao Flu carimbando a sensação que eu tinha de estar perto de poder contar a história da história. 

Um dia ele disse que era fã do meu trabalho. Eu morri de rir dele, porque ele não fazia idéia do quanto eu sou fã de quem consegue ser eterno pra milhões de pessoas. 

Hoje a gente se fala. Não é meu amigo, mas me alimenta. Preciso de Freds. Vivo de Freds. Adoro Freds. E o Fred. 

Até que num almoço esse ano ele me disse que queria parar no meio do ano. E então eu entendi que talvez eu estivesse realizando o sonho de ter uma história pra contar do maior ídolo da história de um clube.

Mas eu tinha dúvidas, sabia? E se ele não for? E se a torcida não enxergar a saída dele como eu enxergo? Quem sou eu pra definir o idolo maior deles? 

E veio o jogo com o Corinthians. Jogo ganho, acabado, e um Maracanã em pé pra aplaudir um reserva de luxo que rodava seu colete. 

Ele entra, a torcida explode como se fosse vê-lo pela primeira vez. Talvez fosse a última. E quis a vida que a bola fosse aos seus pés e gerasse ali uma das mais lindas imagens da história do Maracanã. 

Um sorriso com lágrimas de um cara que já passou por tudo, das conquistas ao 7×1, é mais que um sorriso com lágrimas.

Eu podia ler. Os olhos dele diziam “obrigado”, as lágrimas diziam “adeus”, e o futebol ficava sem palavras ao dimensionar pela primeira vez a perda.

O Fred vai te pegar.

O Fred vai voltar.

O Fred vai descansar. 

A maior coisa que um jogador pode levar do futebol é uma camisa tatuada na pele pra sempre. Não há milhão que pague aos 80 anos você ser parado na rua por alguém que diz “voce foi meu maior idolo”, ou um jovem que dirá “meu pai te adorava”, relembrando o falecido pai. 

Don, você é meu primeiro maior da história de um clube que eu vivi na carreira. Você é um injustiçado, um superestimado, um herói sem capa. Mas com manto. 

Ora, Rica! Herói? Foi só um jogador de futebol!

Não, não foi. Ou você acha que milhões de pessoas vão as lágrimas no sábado pra ver um jogador de futebol entrar de férias?  

Ou você acha que quando um pai e um filho se abraçam num estádio por causa de um gol o autor deste gol fez apenas um gol?

Quando um clube centenário e gigantesco escolhe um cara pra ser seu ícone, ele é só um cara? 

Talvez você discorde de mim e tenha fatos pra me mostrar que o maior ídolo da história do clube foi outro jogador. Mas ainda assim, se os fatos estiverem contra mim, azar dos fatos.

Obrigado, Fred. 

RicaPerrone

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